quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Anibal Quijano

Artigo
Não é surpreendente que a América admitisse a ideologia eurocêntrica sobre a modernidade como uma verdade universal, em especial até o começo do século XX, caso se tenha em conta que aqueles que se arrogavam de modo exclusivo o direito de pensar-se e de apresentar-se como representantes dessa América eram, precisamente, os dominadores coloniais, ou seja, "europeus". E desde o século XVIII, eram ainda "brancos" e identificados com o "Ocidente", isto é, com uma imagem mais difundida da "Europa", mesmo depois de assumir as novas identidades "nacionais" pós-coloniais e inclusive até hoje.
Em outros termos, a colonialidade do poder implicava então, e ainda hoje no fundamental, a invisibilidade sociológica dos não-europeus, "índios", "negros" e seus "mestiços", ou seja, da esmagadora maioria da população da América e sobretudo da América Latina, com relação à produção de subjetividade, de memória histórica, de imaginário, de conhecimento "racional". Logo, de identidade.
E, de fato, como tê-los visíveis, à parte de seu lugar como trabalhadores e dominados, se os não-europeus, dada sua condição de raças inferiores e de "culturalmente" primitivos — arcaicos, costuma-se dizer hoje — não eram, não podiam ser por definição, e não o são totalmente ainda hoje, sujeitos e, muito menos, racionais?
Derrotada a revolução acaudilhada por Tupac Amaru no vice-reino peruano, em 1780, e isolada, mutilada e, embora de outro modo, finalmente também derrotada, a inicialmente triunfante revolução haitiana de 1803, os não-europeus da população latino-americana foram mental e intelectualmente ainda mais invisibilizados no mundo dos dominantes e beneficiários da colonialidade do poder.
No entanto, no mundo do poder, aquilo que se lança pela porta entra de qualquer modo pela janela. De fato, os invisibilizados eram a esmagadora maioria da população da América Latina tomada em seu conjunto, e seu universo subjetivo, seus modos de relação com o universo, densos e ativos demais para serem simplesmente ignorados. E, por outro lado, ao mesmo tempo em que a promiscuidade e a permissividade sexual dos cristãos católicos não cessavam de produzir e reproduzir uma crescente população de "mestiços" — da qual uma proporção muito importante formou, desde o fim do século XVIII em especial, as categorias dos dominantes —, as relações intersubjetivas ("culturais") entre dominantes e dominados foram produzindo um novo universo intersubjetivo considerado igualmente "mestiço", e conseqüentemente ambíguo e indeciso, exceto, sem dúvida, nos extremos de ambas as partes do poder.
A identidade latino-americana começou a ser, a partir daí, um terreno de conflito, que não cessou de alargar-se e tornar-se mais pedregoso, entre o europeu e o não-europeu. Mas mesmo nesses termos, não tem uma história linear ou simples, pois expressa os elementos mais persistentes da colonialidade do poder.
Em primeiro lugar, a relação "racial", envolta em, ou disfarçada de, "cor". Esta é, obviamente, uma relação social hierárquica de "superioridade" — "inferioridade", entre os "brancos", "negros", "índios", "mestiços" e, desde a segunda metade do século XIX, "asiáticos" ou "amarelos" e "azeitonados" ou "oliváceos". Desde o século XVIII, o aumento de "mestiços" obrigou a uma difícil e complicada escala de matizes de "cores" e de discriminação entre "castas" marcadas por tais matizes. Essa gradação social esteve vigente até bem avançado o século XIX. O aumento posterior de "mestiços" tornou ainda mais complexa a classificação social fundada na "raça", sobretudo porque a "cor" foi sobreposta ao biológico-estrutural, devido, antes de tudo, às lutas contra a discriminação racial ou racismo. E, de outro lado, esse mesmo efeito provém da moderna ideologia formal de igualdade entre pessoas de todas as "cores", na qual se apóiam as lutas anti-racistas.
Em segundo lugar, trata-se das relações entre o "europeu/ocidental" e, em conseqüência da modernidade, ou mais estritamente da versão eurocêntrica da modernidade, o não-europeu. Esta é uma relação crucial, na medida em que, a partir dessa versão eurocêntrica, amplamente hegemônica na América Latina, e não só entre os dominantes, o lugar e a condição das experiências histórico-culturais originais do mundo pré-colonial, logo também "pré-europeu ocidental", seriam caracterizáveis como "pré-modernidade", vale dizer "pré-racional" ou "primitiva", assim como as correspondentes às populações seqüestradas na África, escravizadas e racializadas como "negros" na América. Poucos se oporiam hoje a admitir que no discurso dominante, logo, dos dominantes, a proposta de modernização não deixou de ser, não obstante todo o debate posterior à Segunda Guerra Mundial, equivalente a "ocidentalização" .
Em terceiro lugar, o que resulta da resistência das vítimas da colonialidade do poder, que não esteve ausente durante estes cinco séculos. Durante a primeira modernidade, sob o domínio ibérico, os primeiros intelectuais "mestiços" (no extenso Vice-reino do Peru, a maior parte da América do Sul atual, poucos desconheceriam os nomes mais célebres, Garcilaso de la Vega, o Inca, Huaman Poma de Ayala, Santa Cruz Pachacuti Salcamayhua, Blas Valera) iniciaram a defesa do legado aborígine. Poderiam distinguir-se, grosso modo, duas vertentes. Uma, procedente dos célebres "Comentarios Reales" de Garcilaso de la Vega, o Inca, que não deixou de insistir no caráter pacífico, civilizador e solidário do incaico, e outra mais crítica, que insiste no poder e suas implicações, que se originou na "Nueva Coronica y Buen Gobierno", de Huaman Poma de Ayala. Hoje, de certo modo, ambas confluem para reivindicar, contra o caráter crescentemente predatório do capitalismo atual, a restauração de uma sociedade "tawantinsuyana".
Em quarto lugar, a mutante história das relações entre as diversas versões do europeu nesses países. O mais interessante dessa história começou cedo no século XIX, com o conflito político entre conservadores hispanófilos e liberais modernistas, e frente ao expansionismo hegemonista dos Estados Unidos, aliados à Inglaterra. Os "brancos" liberais desses países foram estimulados pela França, sob Napoleão III, a propor que sua identidade européia não se esgotava no ibérico (espanhol ou português), mas sim remetia a um parentesco cultural muito mais amplo: a latinidade. E em torno do fim desse mesmo século, frente ao aberto expansionismo colonialista e imperialista dos Estados Unidos depois de sua vitória sobre a Espanha em 1898, a oposição entre o "materialismo" e o "pragmatismo" anglo-saxônico dos americanos do norte e o "espiritualismo" latino dos americanos do sul, codificada principalmente pelo uruguaio José Enrique Rodó em seu livro "Ariel", pôde ganhar uma vasta difusão e respaldo entre os intelectuais "brancos" e "mestiços". Essa história não terminou. Embora a hegemonia dos Estados Unidos não tenha feito senão ampliar-se e afirmar-se, em especial desde a Segunda Guerra Mundial, não é acidental, sem dúvida, que se tenha conferido preferência ao nome América Latina frente aos demais propostos em diferentes momentos, precisamente desde a Segunda Guerra Mundial.
Enfim, os recentes movimentos político-culturais dos "indígenas" e dos "afro-latino-americanos" puseram definitivamente em questão a versão européia da modernidade/racionalidade e propõem sua própria racionalidade como alternativa. Negam a legitimidade teórica e social da classificação "racial" e "étnica", propondo de novo a idéia de igualdade social. Negam a pertinência e a legitimidade do Estado-Nação fundado na colonialidade do poder. Enfim, embora menos clara e explicitamente, propõem a afirmação e reprodução da reciprocidade e de sua ética de solidariedade social, como opção alternativa às tendências predatórias do capitalismo atual.
É pertinente assinalar, contra todo esse pano de fundo histórico e atual, que a questão da identidade na América Latina é, mais do que nunca, um projeto histórico, aberto e heterogêneo, não só, e talvez não tanto, uma lealdade com a memória e com o passado. Porque essa história permitiu ver que na verdade são muitas memórias e muitos passados, sem ainda um caminho comum e compartilhado. Nessa perspectiva e nesse sentido, a produção da identidade latino-americana implica, desde o início, uma trajetória de inevitável destruição da colonialidade do poder, uma maneira muito específica de descolonização e de liberação: a des/colonialidade do poder.
* Trecho de artigo publicado no dossiê "América Latina" da edição nº 55 (setembro-dezembro/2005) da revista Estudos Avançados.
** O peruano Aníbal Quijano é sociólogo, professor da Universidade de San Marcos, Lima, Peru. Foi professor visitante do IEA e integra o Conselho Editorial da revista "Estudos Avançados".

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